sábado, 26 de fevereiro de 2011

Discurso de formatura*


O artista Waltercio Caldas certa vez escreveu:

“Todos os prefácios se assemelham. Insinuam alguma ironia, resumem rapidamente o que vai acontecer e desaparecem antes do assunto principal”(1).

Podemos dizer o mesmo dos discursos de colação de grau: Todos se assemelham, insinuam alguma ironia, apresentam alguns causos e desaparecem sem deixar vestígios.

Falo em nome dos que aqui se formam sem me sentir muito a vontade com a tarefa que me foi dada, pois como posso falar por todos se cada um nós tem uma diferente concepção do que seja a arte? Os matemáticos sabem o que é a matemática, os biólogos sabem o que é a biologia, mas nós, que agora nos tornamos bacharéis e licenciados em artes visuais e bacharéis em história da arte, passaremos a vida inteira remoendo a pergunta: afinal, o que é a arte?

São muitas as manifestações culturais que podemos dar o nome de arte e elas estão por toda parte, não apenas nos museus e galerias, mas também nas ruas, nas igrejas barrocas do centro do Rio, nos bailes funk dos morros cariocas, no carnaval que se aproxima. Até onde há ciência, há arte: das projeções geométricas da perspectiva renascentista à arte genética de nossos dias, a arte se entranha acintosamente nas coisas do dia-a-dia transformando o lugar-comum.

No entanto, a nossa concepção de arte, isto é, aquilo que nós acreditamos ser arte, é na verdade o resultado de teorias que surgem quando diferentes disciplinas – sociologia, antropologia, psicanálise, filosofia, estética, etc. – se propõem a investigar e analisar essa variedade de expressões simbólicas e culturais(2).

E é nesse não-lugar, nessa co-presença entre as coisas da vida e o emaranhamento de teorias, que podemos dizer que a arte promove o encontro entre a razão e a sensibilidade, entre o pensamento e o sentimento. A obra de arte, produto da imaginação criadora e do discurso teórico, nos lança sempre um desafio aos sentidos e à imaginação: decifra-me ou te devoro.

E é aí que entra o trabalho do historiador da arte: não deixar que a arte caia no esquecimento, não deixar que ela desapareça por completo na velocidade do tempo e nos espaços do mundo. O historiador preserva a memória do objeto da arte, traz a tona a sua lembrança; restaura as condições de sua inteligibilidade; garante às gerações futuras que o passado esteja sempre presente; torna a obra de arte sempre disponível à análise crítica. Se ao artista cabe materializar uma idéia, ao historiador da arte cabe restituir ao pensamento a idéia contida na matéria.

Ao arte-educador, por sua vez, cabe a tarefa de transmitir um pouco essa história, de despertar não apenas o olhar, mas principalmente o senso crítico para as coisas que nos cercam. Engana-se quem pensa que o professor sabe tudo. O exercício do magistério só se realiza por completo na dupla-troca de saberes e de experiências que se dá no convívio entre alunos e professores. E nisso talvez a arte seja a mais generosa e gentil das disciplinas: aquela que oferece maior possibilidade de diálogo entre alunos e professores, já que o verdadeiro da arte surge do dissenso tanto quanto do consenso.

Por fim, mas não por último, cabe ao artista a difícil tarefa de reinventar a arte constantemente. É através do ato de criação que o artista transforma a idéia em matéria, em processo ou procedimento artístico. A obra de arte é um “estranhamento na direção do sensível”(3), uma espécie de alienação do pensamento. Ao se libertar da obra o artista não mais responde por ela. É no embate com o público e com a crítica de arte que serão negociados os significados da obra de arte. E ao fazer a arte o artista gera também os espaços de convivências, de trocas de experiências, de negociação de sentidos, de ressignificação simbólica e de partilha do sensível(4).

Para encerrar esse discurso, se a arte é uma ficção da cultura européia, uma invenção da cultura burguesa, pelo menos podemos afirmar que é a mais maravilhosa das ficções! Que sejam sempre bem-vindas todas as formas de arte. E que sejam igualmente bem vindas todas as críticas, pois, sem arte e sem pensamento crítico, nós hoje não estaríamos aqui.

*Discurso proferido por Agnaldo Rego na ocasião da colação de grau dos alunos dos cursos de Bacharelado em História da Arte, Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais da UERJ, em 18 de fevereiro de 2011 no Teatro Noel Rosa-UERJ.

(1) Prefácio de Waltercio Caldas da primeira edição do livro Manual da ciência popular, 2.ed.ampl. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

(2) Cf. CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. São Paulo: Martins, 2005.

(3) HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética I. 2.ed.rev. São Paulo: EDUSP, 2001.

(4) Cf. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005.

sábado, 21 de agosto de 2010

À procura das não evidências, vivências


“O que importa para mim, querida Sofia, é que você não esteja entre aqueles que consideram o mundo uma evidência”
(O mundo de Sofia)


“Ocorreu-me de repente que não é preciso ter ordem para viver.
Não há padrão a seguir e nem há o próprio padrão: nasço.
(Água Viva)¹



Recentemente comecei a ler um livro que peguei emprestado com uma amiga há pelo menos cinco meses. O fato é que desde a adolescência queria ler O mundo de Sofia, mas só agora estou lendo. E talvez não houvesse momento melhor. O romance juvenil aborda questões filosóficas que durante toda história da humanidade instigaram (e instigam) este


maravilhoso e complexo
pequeno universo
que é o ser humano

e tem sido pra mim um resgate de uma percepção de mundo

que escapa ao marasmo da vida adulta,
das linearidades e
das evidências.


É com esse pensamento que desejo falar da ação Bem me quer, mal me quer de Luana Aguiar

Bem me quer, mal me quer a princípio é uma performance em que a artista
depila inteiramente uma de suas sobrancelhas.
Com uma pinça e um pequeno espelho de mão Luana arranca delicadamente um por um os pelos que aos poucos dão lugar à uma [ausência] com que não sabemos lidar. A contradição de leveza e dor também nos [afeta], não sabemos se apreciamos a bela mulher que se olha no espelho desenhando sua sobrancelha ou se fechamos os olhos sentindo a dor daquele ato que ultrapassa o feminino.


.

{A questão é que não sabemos o que fazer com aquilo que [não] nos é uma
necessidade evidente.


A partir do momento em que somos colocados diante de uma situação limítrofe² que nos obriga a encarar a deformação de um padrão visual ou comportamental ao qual estamos habituados (a simetria e a depilação regular do excesso de pelos das sobrancelhas), essa situação não diz respeito apenas a um limite do corpo, mas a um limite cultural, um limite que é fruto dos condicionamentos sociais a que estamos submetidos em nossas relações.

Bem me quer, mal me quer não fala apenas do feminino, seu ponto chave são os padrões da sociedade ocidental.

A ausência daquela sobrancelha
é
uma quebra do ritmo ao qual estamos condicionados.
Bem me quer, mal me quer não é apenas uma performance, pois não se encerra quando termina a ação.

Ela continua...

Reverbera na própria artista e em quem quer que a encontre.
Ela cresce viva e sem definição, como as sobrancelhas que já não são mais assimétricas³.

E continua, poeticamente,
resgatando aquilo que nos esquecemos:
a percepção de mundo que escapa das evidências.

Se na experiência estética da arte nos (re)lembramos dessa percepção, são nas vivências que nos damos conta de como é difícil e prazeroso ser o pequeno universo que (re)inventamos ser.



¹ Um dos meus livros favoritos. Clarice Lispector em 1ª pessoa.

² Situações Limítrofes é como a artista intitula a série de performances que vêm produzindo desde 2008 com a abordagem dos limites do corpo.

³ No dia seguinte à performance a sobrancelha restante foi retirada para manter a simetria do rosto.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Uma metafísica contemporânea

Este ensaio parte da afirmação de Schopenhauer de que a música tem uma "íntima relação" com a "essência verdadeira de todas as coisas". Apresentaremos em linhas gerais uma interpretação metafísica atualizada para algumas formas de arte "tradicionais" - pintura, escultura, fotografia e, especialmente, música e dança.

Não acredito que exista uma "essência verdadeira de todas as coisas". Acho que a verdade é circunstancial. Uma música pode "cair bem" hoje e ser bastante ruim no dia seguinte, dependendo do "estado de espírito" do sujeito, tanto do músico quanto do ouvinte (nem sempre o músico está nos seus melhores dias).
Mas acredito que a arte além de ser uma manifestação culturalmente determinada também é uma realização do "espírito". Não usaremos a palavra "espírito" na ampla concepção hegeliana do termo, ou seja, em relação à verdade e à vida, ainda que neste ensaio a palavra remeta à própria vida do artista.

Qual seria a melhor ou "mais elevada manifestação do espírito" nas artes?
A música é uma forte candidata (Schopenhauer e Nietzsche atestam isso).
Acho que a dança também...

Na música há uma relação direta de "produção e consumo", de comunicação entre artista (produtor) e espectador (receptor). A música invade a alma, a reação é imediata.
A sensação que tenho é que alguns artistas tiram o som da alma. Dá-se portanto, uma relação espiritual entre o músico e o ouvinte, que não é determinada pela razão.

Há tanto na música quanto na dança uma forte relação com o corpo, ao contrário, talvez, das outras artes em que a relação é mais com a matéria. A música e a dança são materializadas, encarnadas, no corpo do artista, o que estreita o vínculo entre as duas naturezas, a do homem e a da arte.
Na música o instrumento torna-se parte do corpo para a constituição da obra.
Na dança o corpo faz-se obra. A dança é uma espécie de híbrido de tempo e espaço em que o corpo e o movimento oferecem o instante de beleza plástica, como na fotografia e na escultura ou mais precisamente como a "fotografia de uma escultura".

Lembremos que na época de Shopenhauer a música era executada ao vivo, não existia gravação. Portanto, só havia música e dança com a presença do artista.
Alguém pode alegar que o músico é apenas um intérprete e que a "verdade" estaria na partitura. No entanto essa verdade só se revela no momento da execução da obra.

Para Hegel, a aparência é essencial à essência, a forma é a materialização da essência.
Como não há corpo sem alma e vice-versa (excluindo-se considerações religiosas) talvez a música e a dança sejam as "mais elevadas manifestações do espírito", já que instrinsecamente relacionadas ao corpo e vivenciadas simultaneamente por artista e espectador.

Na pintura e na escultura eu procuro recriar mentalmente (imaginar) o momento do gesto criador. Não consigo relacionar a pintura com a música, mesmo diante dos quadros do Kandinsky.
Mas tento, e às vezes consigo, perceber a sutileza e a delicadeza de cada pincelada, o gesto criador, o que me faz entrar em contato com o "gênio" do artista no instante da criação, como na música.

Na arte conceitual esse jogo de recriação mental é de ordem inteiramente racional, até que um significado qualquer se revele. Há uma relação forte com o entendimento, com o "interesse especulativo". Uma obra de arte conceitual está para a primeira crítica de Kant, assim como a arte objetual está para a terceira crítica, ou seja, a necessidade do conceito ou do significado determinado pelo entendimento em oposição à fruição sensível e desinteressada.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Marla Olmstead

Vi um documentário ontem chamado My kid could paint that (no Brasil com o título "Pintora aos 4 anos").
Conta a história da menina Marla Olmstead que começou a pintar aos 4 anos por incentivo dos pais e virou sucesso nos EUA, vendendo alguns quadros por dezenas de milhares de dólares.
Começaram a questionar a autenticidade das obras: o pai podia ser o pintor ou ter ao menos dado uma mãozinha (de tinta).
No final chegaram à conclusão que a garota era capaz de pintar sozinha (ainda que houvesse ajuda do pai em alguns quadros, suspeita não comprovada...).

O legal é o debate sobre arte: a velha querela abstrato x figurativo; como ainda persiste entre o público a idéia de que a produção artística deve se destacar pela perícia técnica; a idéia de que pintura abstrata qualquer um faz e coisas do gênero.

O documentário também nos faz pensar em como situar a produção de arte infantil em um mundo público da arte feita por e para adultos. Ninguém dúvida da genialidade de Mozart quando criança... mas e quanto à pintura abstrata de Marla?

Me lembrei de uma passagem de Michael Fried, citada por Paul Wood no livro Arte Conceitual, que diz que se o espectador não é capaz de reconhecer que uma pintura é “magnífica” então “não há nenhum argumento crítico que possa substituir esse sentimento” *.

Particularmente, gostei de algumas pinturas que vi pelo site (sem que necessariamente as considere "magníficas"). Não gostei das que se parecem com trabalhos escolares.
No geral, é um trabalho que tem um apelo visual forte, um bom equilíbrio de cores, "arte de gente grande".

Quanto ao título do documentário (original em inglês), acho que o diretor Amir Bar-Lev foi sensacionalista demais. Se meus filhos pintam daquele jeito eu não sei. Eu, com certeza, não.
___
* WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac Naify, 2002. p.40

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Uma nova defesa da arte contemporânea

“O que inicialmente era repulsivo aos espectadores da arte moderna,
quando quer que tenha começado, é que ela própria era ofensiva, não que
representasse coisas ofensivas.”
Arthur C. Danto*
Existe ainda um certo tipo de sentimento com relação à arte contemporânea associado à idéia de fraude, de cinismo, de repetição de modelos do passado e coisas do gênero, que motiva a produção de um discurso pseudo-crítico saudosista, utópico, que anseia, dogmaticamente, por um retorno à ordem estética anterior aos anos 60.
Esses pseudo-críticos se esquecem que grande parte da produção artística desde meados do século XIX passou por um difícil processo de aceitação, num contínuo embate com os padrões estéticos - ou simplesmente, o gosto - da época. Ou seja, em qualquer época existe sempre um descompasso entre os defensores da tradição - sejam eles críticos de arte, acadêmicos, ou o público em geral - e os artistas produtores de novidade.
Por outro lado, críticos como Baudelaire e Zola saíram em defesa do novo, da modernidade, da ruptura com a tradição, o que acabou se transformando, até certo ponto, na motivação principal dos artistas de vanguarda: a inovação constante, o desejo de mudar e romper com estruturas tradicionais, uma crítica do passado e um programa para o futuro.
Ainda hoje, como não poderia deixar de ser, temos os grupos que se posicionam contra ou a favor da produção atual. Mas com o agravante de que, por ignorância ou desconhecimento do que aconteceu com a arte nos últimos cem anos, os pseudo-críticos pregam um retorno impossível ao passado, através de um discurso de retórica modernista que contribui mais para o enraizamento do preconceito em relação à arte - e aos artistas contemporâneos de um modo geral - do que para a orientação do público de arte.
Podemos verificar nesse discurso pseudo-crítico o desejo pela manutenção da ordem do mundo: querem que tudo seja previsível, cada coisa no seu lugar. Nesse mundo perfeitamente ordenado, confortável, asséptico, temos o aparente controle da situação, sabemos exatamente de onde surgirão as coisas “imprevisíveis” e onde devemos procurar o que buscamos: a política como geradora de escândalos de corrupção; a imprensa como veículo de denúncia; o cinema e o futebol como entretenimento; a religião para o conforto espiritual; os artistas produzindo belas pinturas e esculturas que serão guardadas para sempre nos museus; a arte como fonte do prazer “retiniano”.
O problema é quando a arte quebra essa relação com a aparente ordem do mundo e nos tira da posição confortável de admiradores de coisas belas. E quando a arte produz o escândalo? Duchamp apresenta uma roda de bicicleta como obra de arte. Piero Manzoni enlata merda de artista. Chris Burden leva um tiro no braço diante das câmeras. Ives Klein manda mulheres nuas pintarem a parede com seus corpos.
E quando a arte se apresenta como simples forma de entretenimento, como a piscina de bolas de Ernesto Neto** ou o tobogã de Carsten Höller instalado na última Bienal de São Paulo?
E quando a arte deixa de estar a serviço da religião e se propõe a profanar o sagrado? O crucifixo de Márcia X, os oratórios de Farnese de Andrade, o tridente de Alexandre Vogler.
O embate da arte não se dá mais somente com o mundo da arte mas com o mundo em si. Para entendê-la é preciso, antes de mais nada, livrar-se dos preconceitos. E nisso o verdadeiro crítico de arte tem um papel fundamental: se antes sua missão era educar o olhar - para permitir a assimilação do novo ou para uniformizar o juízo de gosto - agora seu dever é ajudar o público a compreender as múltiplas formas de manifestação artísticas, resgatando a história da arte para reduzir o abismo de mais de cinquenta anos que separa o público da arte contemporânea.
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* DANTO, Arthur C.. “Marcel Duchamp e o fim do gosto: uma defesa da arte contemporânea”. In: ARS Revista do Depto. de Artes Plásticas ECA-USP, nº 12, dez/2008.
** Piscina de bolas exposta na exposição Tropicália no MAM-Rio em 2007 . Jimson e Carolline me ajudaram a descobrir a autoria dessa obra, já que originalmente havia publicado neste artigo como sendo de Hélio Oiticica.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Crítica contemporânea

A crítica contemporânea encontra uma produção artística bastante diferente da obtida na arte moderna. Toda a discussão em torno de questões próprias a arte da especialização do meio e de uma negação do passado – que podemos entender como uma nova postura, através de valores diferentes do passado, mas com referência nele –, possibilitou uma consciência maior a respeito da conceituação da obra de arte e por um outro lado, um esgotamento do meio (devido à intensa exploração de seus recursos). Com isso, a arte se encaminha para o desenvolvimento de outras questões, modificando também o seu entorno, a forma como deve ser percebida, os critérios e os juízos de valor a ela aplicados. A arte contemporânea, ao contrário do que se percebe nas vanguardas, não possui um sentimento negativo à arte do passado. “É parte do que define a arte contemporânea que a arte do passado esteja disponível para qualquer uso que os artistas queiram lhe dar.” (DANTO, 2006, p.7). Essa nova produção coloca em xeque a crítica de arte, ou pelo menos como até então era desenvolvida.

Arthur Danto chama atenção para a obra de Warhol: “o que muda profundamente com a mostra de Warhol, naquele momento histórico, é que a obra de arte não se submete mais a nenhuma forma particular e que a análise da obra de arte não se faz através da visão, mas da análise filosófica.” (DANTO, 2000, p. 200) A questão colocada aqui é que a obra de arte só se diferencia do que não é arte por se encontrar no museu, não há um caráter visual que denomine aquele trabalho como arte. Existe aqui uma questão conceitual, que vinha sendo muito bem trabalhada no modernismo. Por isso Duchamp faz tanto sentido hoje, pois atua no campo conceitual e não no da visualidade que Greenberg procurava. Pois bem, se a visualidade na obra de arte não mais tem importância, que critérios se estabelecerão para esse julgamento? Possuí-los-á alguma validade?

“O que aconteceu foi que o crítico, a partir de então, já podia dissolver as fronteiras que o separavam da criação artística. Não literalmente, como vinha fazendo até então, mas artisticamente. Por quê? Porque a mediação e a idéia passaram a ter maior importância do que o produto final. O crítico que sempre usou conceitos para falar da mediação e do produto, quer dizer, dos elementos formais do trabalho, o crítico passou a usar idéias para falar quase apenas de idéias. No fim, o que o crítico estava fazendo era o mesmo que o artista. Os dois fazendo arte e fazendo crítica.” (LEINER, p. 57)

A crítica de arte assim como o que passou a ser produzido, teve que sofrer modificações, pois uma crise é colocada em questão. Acreditamos que essa mudança tenha sido em primeira instância em relação à metodologia abordada. Não mais se poderia fazer uma crítica baseando-se em apenas um caráter da obra de arte, a apreensão dessa produção só se faz possível com a ampliação do olhar.Uma outra característica da crítica contemporânea, é que ela – e isso pode estar relacionado ao que Sheila Leiner atenta – se propõe a estabelecer um diálogo com a obra, a tecer um comentário, um acréscimo. Queremos chamar atenção, para o fato de que a crítica contemporânea – é claro que não podemos generalizar, mas de fato, em sua maioria – possui uma postura muito mais compreensiva, menos rigorsa que a crítica moderna, principalmente em se tratando da crítica do século XXI. Pensemos na figura descrita por Deleuze em carta a um crítico severo, existe uma tendência para que esse tipo de crítico, seu posicionamento, não mais tenha valor, pois sua contribuição é muito pobre. A crítica contemporânea relativiza mais, tenta ser mais cautelosa, tanto pela diversidade da produção contemporânea e suas múltiplas possibilidades de leitura, quanto por uma trajetória da própria crítica, de uma reflexão das abordagens feitas anteriormente.
Assim como a arte, a crítica também se modifica ao longo da história, suas mudanças acompanham as mudanças artísticas. Poderíamos dizer também que as mudanças artísticas ocorrem por conta da crítica? Talvez sim. Crítica e arte são interdependentes, ou seja, influenciam-se o tempo todo. E assim como a arte se desenvolve através de uma crítica, uma reflexão, do que se foi produzido anteriormente, a crítica se desenvolve também por uma auto-reflexão em conjunto com a produção contemporânea.
Uma das principais diferenças entre a crítica moderna e a crítica contemporânea é o fato de a moderna realmente querer se estabelecer no circuito, trazer uma autenticidade, ser gerada através de critérios específicos de análise e ter uma presença muito forte como legitimadora. Já a crítica contemporânea não precisa necessáriamente se estabelecer no circuito, mas como sua validade entra em cheque, é preciso uma reinvenção de seus critérios. A crtítica moderna atua, sobretudo, nos jornais, enquanto a crítica contemporânea dispõe de diversos meios de comunicação e inclusive, com a voga da internet, é através de blogs e revistas eletrônicas que sua atuação responde à carência de crítica de arte nos jornais. Isso de certa forma limita o reconhecimento dos críticos de arte, pois nem todos conseguem de fato uma publicação de grande visibilidade, o que possivelmente acontecia com menos frequência no modernismo.
Termino com uma citação de André Richard sobre a necessidade da crítica de arte:“Finalmente, em presença de formas de arte que não mais comportam um sentido universalmente reconhecivel (abstração, arte cinética) nem uma técnica avaliável (arte pop), pode-se perguntar onde se apoiaria legitimamente uma apreciação crítica. Talvez a resposta seja que, apesar das dificuldades, a crítica de arte, por mais inadequada que seja, responde a uma necessidade de compreender o fenômeno artístico e a um desejo de compartilhar o julgamento que se emite sobre as obras. Pode-se demostrar sua impossibilidade, mas deve-se constatar sua existência.” (p.2)

Bibliografia

ARGAN, G. C. Arte e crítica de arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1988
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus editora, 2006.
_______________. Arte sem Paradigma. In: Arte e Ensaios – revista do programa de pós-graduação em artes visuais EBA. UFRJ, 2000.
DELLEUZE, Gilles. Carta a um crítico severo. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. Editora 34.
FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília (org.) Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
LEINER, Sheila. Arte e seu tempo. São Paulo: Perspectiva: Secretaria do Estado da Cultura, 1991.
RICHARD, André. A crítica de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
VENTURI, Lionello. História da crítica de arte. Lisba: Edições 70.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Sim, nos sentimos perdidos diante da pintura de Gabriela Machado. Por pouco tempo, perdidos. Ou para sempre. As pinceladas, as cores, o empasto e a massa fazem a vez de guias. O espectador é levado a um novo lugar, o qual não se sabe qual é nem se interessa saber. O que interessa é ser levado a esse novo lugar. Nos perdemos no lugar que acreditávamos ser definido para nos encontrarmos no indefinido. Ali, não há o gênio que atinge o gesto pelo transe. Há a mente, que pensa, e o corpo, que pulsa. Do artista e do espectador.

Há também, e fortemente, uma dose de ansiedade. Ansiedade do fazer, da cor, da descoberta, da surpresa. Penso, então, que sua obra é um sacrifício, porém, nesse momento, ainda dessacralizado . Há o risco em virtude da ânsia, mas suas opções são sempre sacrifícios. Um após o outro. Cores que surgem, mas, em razão de um novo gesto ansioso, desaparecem (sacrificam-se); contornos se delineam, e uma nova pincelada, certamente arriscada, deforma e reforma (sacrificam-se). A obra se constrói, então, de sacrifícios sucessivos. A artista renuncia a todo momento àquilo que já estava para se aventurar em algo que não está, nem tampouco é.

Suas pinturas são repletas de vida. Para a pintora, o trabalho “não é para se olhar, mas para se jogar”. Entretanto, tal é a força, que somos sugados, apreendidos, atraídos. Mergulhamos num mar de significados, imagens, formas. A tinta se mistura na tela e não na paleta – se arrisca na tela e não na paleta. Gabriela Machado nos atinge profundamente com seus sacrifícios, com sua paixão. Por sua potência, a pintura, enfim, se sacraliza.


Felipe Abdala

terça-feira, 28 de abril de 2009

O Macaco pintor e o mágico da "Cartola"

...essa história de macaco pintando tela, já deu e vai dar o que falar, vão aparecer como o "Daniel" os que aproveitam a ocasião para mandar um pensamento"Kaozístico delirante" e aparecer mais que o macaco, que é quem tá pintando na cena...rsrsrs
Pô, palmas pro macaco, se o cara fica "incomodado" e não consegue digerir uma clara jogada de marketing da rede "grobo", ou melhor, finge que não consegue, mas deve até fazer parte dela, é outra questão.
No final sobra pro povo, ou pro macaco....sacanagem...
As pessoas do grupo (roberto, agnaldo, carol, lu, ...) disseram bem, a vida por si só apresenta as soluções e explicações para os problemas e dilemas, nós é que escolhemos o caminho mais simples ou o mais complexo para vivenciá-los...
O povo não quer isso ou aquilo, e nem precisa de nada para ter cultura, o povo quer dignidade, humanidade, condições satisfatórias de vida e só...
Cultura se faz através disso, da vida, das coisas do cotidiano, que mescladas com as informações adquiridas, formais ou não, ganham novos formatos e significados...e assim "vâmo que vâmo"...
Cartola não precisou da escola prá criar "As Rosas Não Falam", precisou dela apenas para formalizá-la... mas teve que viver o que viveu, para perceber que realmente elas não falam...

Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão,
Enfim

Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar
Para mim

Queixo-me às rosas,
Mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai

Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
Por fim...

abraço
UbiratãO.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Brecht se remexe no túmulo. De felicidade.

Creio que se Bertold Brecht ainda habitasse entre nós estaria muito feliz com os rumos que o bom teatro contemporâneo tomou. Suas teorias acerca do papel da audiência num espetáculo, da relação entre palco e platéia, da negação do palco como uma caixa fechada entre quatro paredes alheio ao mundo que o cerca, foram exaustivamente estudadas e desdobradas. Digo exaustivamente num sentido quantitativo.
Me sinto obrigado a recomendar a todos aqueles que se interessam por teatro a assistir A Filha do Teatro, peça teatral produzida pela Cia do Pequeno Gesto. Esta peça eleva a discussão a respeito das proposições e possibilidades da linguagem teatral na contemporaneidade. Não é o novo que habita ali, mas o diferente, uma nova possibilidade, uma nova forma de se fazer. Nesse sentido, podemos dizer, é pós-moderno.
A peça se propõe a discutir o papel dos agentes teatrais: o ator, o personagem, a audiência, o enredo, o palco, o cenário. As três atrizes representam as três personagens principais da trama, no entanto, há momentos em que todas representam todas e há momentos em que ninguém representa. É assim: aparentemente confuso, mas sutil e belo, pondo à prova o papel do ator numa sociedade pós-moderna, a constituição do personagem como dependente de um corpo físico para ser encarnado (há uma cena em que as atrizes sentam na platéia e apenas uma narração continua a cena. O palco nu). Além disso, a utilização de novas mídias incorporadas às artes cênicas nos apresenta novas formas de relações. Filmagem e transmissão em tempo real, projeção em finas cortinas de voil, tecnologia adaptada à cena. As atrizes, estando em um lugar, podiam estar em todos, serem vistas por todos, assim como podiam, como aconteceu, não estar e estar ao mesmo tempo.
A audiência, por vezes, se vê destituída de seu “conforto”. Fomos mais que uma platéia, fomos cenário, fomos imagem, fomos atores, fomos surpreendidos. Uma vez que o espetáculo se apresenta numa galeria adaptada de teatro, a platéia se divide em duas metades, cada qual numa extremidade do espaço. Assim, com o palco no meio, ao assistirmos a peça, ao fundo vemos a outra metade do público e também somos vistos por eles.
O grande mote da peça – seu ponto de partida e aquilo que deixa em nós – é: real, virtual, imagem, corpo: o que são essas instâncias? Em que se constituem cada uma delas? Só se é real quando não se é virtual ou vice-versa? Creio que, mais um pouco, alargamos as fronteiras de nossa percepção e discussão acerca das possibilidades da arte. A Filha do Teatro é, sem dúvida, uma boa surpresa, mas não um acaso. Vê-se que é resultado de árduo trabalho e estudo sobre teatral, comprometendo-se em apresentar um espetáculo digno e com muita riqueza. Assim como na Cia do Pequeno Gesto, precisamos de pessoas mais sérias no nosso meio.

A Filha do Teatro
Caixa Cultural Almirante Barroso - Galeria 2.
De 16 de Abril a 17 de Maio.
Ingresso R$ 10,00 (inteira).
Qui. a Dom. às 19h30min.

Woody Allen e os trinta anos de Manhattan

"Manhattan" (1979) dialoga com "Annie Hall" (1977, lançado no Brasil com o título de “Noivo neurótico, noiva nervosa”). O tema é o mesmo: o amor. O diretor Woody Allen traz o amor para a dimensão do cotidiano, sem os clichês dos filmes românticos que acabam em final feliz ou tragédia.
Em Annie Hall, o personagem principal Alvy Singer (Woody Allen) não sabe o que quer e deixa escapar aquela que talvez fosse o grande amor da sua vida.
Em Manhattan, Isaac Davis (Allen) pensa que sabe o que quer, mas também não sabe. Aos 42 anos e namorando uma garota de 17 (Tracy, interpretada por Mariel Hemingway), Isaac acredita que é muito cedo para que a jovem se apaixone por ele e a aconselha a procurar rapazes da sua idade, que viva cada amor de sua juventude, cada um ao seu tempo. Mas o amor não correspondido por Mary (Diane Keaton), uma mulher mais madura, expõe a fragilidade de suas convicções.
As dúvidas dos personagens sobre a pessoa ideal são a fonte de suas inseguranças e ansiedades. Na tentativa platônica de buscar o verdadeiro amor, Alvy Singer e Isaac Davis se preocupam com o futuro e esquecem o presente. Com isso deixam de viver intensamente suas paixões e acabam eternamente frustrados.
A última frase de Manhattan é dita pela jovem Tracy e soa como uma filosofia profunda que Isaac, apesar de 25 anos mais velho, não conseguiu perceber: "You have to have a little faith in people" ("Você tem que ter um pouco de fé nas pessoas"). Com essa frase, Woody Allen encerra o filme e deixa em aberto a questão de dar uma chance ao destino - acreditar nas pessoas e não tentar controlá-las parece ser o segredo do amor.
Manhattan tem como pano de fundo a cidade de Nova York. E nada mais nova-iorquino do que a escolha de George Gershwin para a trilha sonora do filme. Gershwin e Allen nasceram no Brooklin. E ambos sintetizam magistralmente, na música e no cinema respectivamente, a cidade e seu tempo.
O filme, todo rodado em preto e branco, cria uma atmosfera noir que contrasta com a realidade de Nova York, uma das cidades mais iluminadas do mundo. Woody Allen talvez queira revelar a essência da cidade, retirando suas cores e expondo seus contrastes e tornando o filme mais intimista.
Em ambos os filmes a trilha sonora é econômica – um estímulo à reflexão através dos diálogos com um mínimo de interferência da música, que geralmente é usada no cinema para guiar as emoções do espectador.
Annie Hall tem uma rigidez formal e técnica mais apurada que Manhattan. As cenas têm quase todas a mesma duração de aproximadamente um minuto. O som é sempre inserido para marcar a transição abrupta para uma nova cena. Esse controle do tempo e da transição sonora das cenas mostra a preocupação do diretor com a montagem do filme, deixando-o com um ritmo forte que prende o espectador e que mereceu o Oscar de melhor filme. Em Manhattan não há essa rigidez. Cenas da cidade com a música de Gershwin ao fundo oferecem um contraponto aos diálogos, deixando o espectador "respirar" e tornando a narrativa mais fluída e menos impositiva.
Ambos os filmes oferecem ao espectador momentos de reflexão sobre o amor, o tempo e a vida. Como toda obra de arte não perderam seu valor com o tempo, pelo contrário. A distância de trinta anos que nos separa da época em que os filmes foram lançados oferece a possibilidade de um novo questionamento que complementa as reflexões propostas por Woody Allen. Mais cedo ou mais tarde cada um se pergunta: o que fiz nos últimos trinta anos e o que pretendo fazer nos próximos trinta? Uma questão que a própria vida nos coloca como crise da meia-idade.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Tunga: um estranho familiar

Experimentar o corpo e com o corpo: desde os tempos neoconcretos[1] até os dias de hoje o corpo se faz presente, das mais diversas maneiras, nas poéticas de grande parte dos nossos artistas. É a herança neoconcreta de experimentação, de íntimas trocas entre obra e espectador, de fazer deste, parte constitutiva do trabalho.
Em Tunga é inegável a presença dessa herança. No entanto, ela é envolvida por uma série de outros elementos participantes de sua poética tais como relação entre realidade e ficção, afirmação de mitos, fenômenos científicos, processos alquímicos, fabulações e uma profunda relação com a literatura e cinema. Esses elementos se corporificam em esculturas / instalações / performances / escritos / vídeos: nunca, porém, em uma única destas categorias, mas criando conexões, co-relações entre elas.
Questionamento das instituições, relação entre arte e vida, desdobramentos da noção de autoria individual, poéticas coletivas e experimentação são também termos chaves para designar as práticas neoconcretas. E assim se evidencia a relação do trabalho de Tunga com tais práticas. Mas o que torna a obra de Tunga um emaranhado de complexidades que se relacionam, mas que, ao mesmo tempo, se distinguem das proposições de Hélio Oiticica e Lygia Clark?
A opção de Tunga é por experiências radicais. Em suas próprias palavras, no seu modelo de trabalho “existe a vontade de que uma experiência seja generalizada e seja testemunhada como uma experiência radical, não banal, reveladora de um sentido novo. Isso se converteu em uma estratégia de trabalho, ou seja, o fato de existir uma quantidade de pessoas fazendo a mesma atividade, sendo essa atividade deslocada de seu sentido originário, criando em si mesma uma estranheza para essa atividade, o que faria com que ela se manifestasse como sendo uma outra coisa, além daquilo que ela é.” [2]
Que Tunga, Hélio e Lygia passam pelo experimental não há dúvida. Suas estratégias se diferem pelo fato de que esses últimos buscavam ter suas experiências criativas "compreendidas", como se determinassem, através de registros, a linha de pensamento pela qual se desenrolaria a leitura de suas proposições.
"Como outros de sua geração, Oiticica manteve a crença na auto-explicação e através da prática do arquivo pessoal investiu conscientemente na fabricação de sua própria posteridade. Com esta estratégia, reproduzia um pensamento de Glauber Rocha (...) que segundo Rogério Duarte (parceiro de ambos) afirma: "inventaria-te antes que os outros te transformem num mal-entendido" (COELHO, 2008)
Tunga, ao contrário, parece deixar em aberto a criação de sentido para suas ações. Ele se coloca em uma busca constante, cria relações onde parecem não existir e nisto reside a complexidade da sua poética. Muitas de suas ações são cercadas de conteúdos escritos, mas estes não têm o caráter documental tal como em Hélio. Os escritos de Tunga são muitas vezes poesias ou narrativas imaginárias que criam um jogo de ficções permeando o trabalho.
Tunga aglutina ou elabora objetos e situações de significações misteriosas em um mesmo espaço ou ritual. Crânios e esqueletos humanos, cabeças de esculturas clássicas, redes, trançados, bengalas (A La Lumiere des Deux Mondes, Museu do Louvre - 2005); enormes dentes e outras formas orgânicas fundidas em alumínio, penduradas por correntes em estruturas de ferro e tecido (Afinidades Eletivas, 2004); ainda enormes dentes humanos sobre um tabuleiro de xadrez (Ações sobre Afinidades Eletivas, 2004 e 2005); corpos nus ou semi-nus que contracenam com as mesmas formas orgânicas já citadas e se lambuzam em uma matéria pegajosa (Ação na Floresta, 2002); criação de fabulações, ficções, narrativas imaginárias ou afirmação de mitos que dão suporte à construção de trabalhos (Tesouros-Besouros, 1992 ou sereiA, 1997); diversos objetos, incluindo vidros cheio de líquidos, agrupados por redes, como células, construindo um poderoso emaranhado vermelho, apresentado em várias versões (Truge Rouge, 1996, 1998, 1999, 2001): essas são apenas descrições superficiais do que se pode testemunhar em algumas de suas instaurações.
"O caráter ritual das instaurações de Tunga situa-se no rastro do caminho aberto na arte por Lygia Clark, para quem o artista contemporâneo é o propositor de "um rito sem mito".", afirma Suely Rolnik[3]. Ora, Tunga é um grande propositor de rituais, mas a esse rastro, ele adiciona alguns fatores que distanciam profundamente o seu trabalho e o de Lygia. Sobre a presença do corpo em seu trabalho, por exemplo, Tunga diz que “esse corpo é um corpo constituído, sabedor de suas experiências, de sua milhagem. Ou seja, essas experiências não são propostas como sensações, mas como confronto com uma fantasmática que pode produzir outras fantasmáticas.”[4]
Tunga também vai de encontro às proposições de Lygia ao não deixar de afirmar “o espaço representativo” e a “transferência no objeto de arte”, além de não se opor à “precariedade”[5] (considerando o uso de materiais como ouro, prata ou alumínio fundidos e complexas estruturas em suas instalações). Ele mesmo estabelece uma relação entre o seu trabalho e a escultura clássica através da idéia do que resta da matéria, daquilo que tomou forma mediante uma lapidação, um aperfeiçoamento.[6]
Dentes, bengalas, trançados, formas orgânicas, matéria pegajosa, corpos, rituais: são várias as situações em que os mesmos elementos se fazem presente. Essas indas e vindas, esse círculo de revisitação é a prova de que Tunga não para de pensar, viver e rever as suas próprias obras / ações. O trabalho torna-se uma grande massa orgânica que se encontra em constante mutação, processo pelo qual o artista se torna agente.
Dar voz às proposições de Tunga é deixar-se levar pelo estranho, pelo misterioso, pelo cruel. É entrar por um labirinto de significados e sair dele descrente de qualquer conclusão. É sentir a vertigem que entra pelo olhar e se apodera do corpo como um choque de sensações (o que se difere das propostas sensoriais de Lygia). É um estranhamento familiar: familiar porque inevitavelmente se conecta com o passado histórico neoconcreto e estranho porque abre um campo imenso e misterioso de possibilidades.
[1] sem desconsiderar as práticas pioneiras de Flávio de Carvalho
[2] Tunga. Assalto. p. 130
[3] Rolnik. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer...
[4] Tunga em entrevista a Antonio Gonçalves Filho
[5] Clark. Nós somos os propositores.
[6] Tunga. Assalto. p. 134

Bibliografia
MONTEIRO, Ivana. Instaurando com Palavras: as Narrativas e Fabulações de Tunga. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 6, p. 82-95, 2004.
ROLNIK, Suely. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer..., In: MORIN,
France (org.). A Quietude da Terra (cat.). MAM/Bahia, Salvador, 2000.
TUNGA. Barroco de Lírios. São Paulo, Cosac & Naify, 1997.
TUNGA. Assalto. CCBB-Brasília, Brasília, 2001 (cat.).
TUNGA. Caixa de livros Tunga. Cosac & Naify, 2007
COELHO, Frederico. Arquivo e Afeto em Hélio Oiticica. In: -----. Livro ou Livro-me: os escritos babilônicos de Hélio Oiticica. 2008. Tese (Tese em Literatura Brasileira) – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
CLARK, Lygia. Nós somos os propositores. In: Clark, Lygia. Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980
Tunga em entrevista a Antônio Gonçalves Filho. http://www.cosacnaify.com.br/tunga/entrevista.asp

sábado, 28 de março de 2009

outros espaços

Qual seria a reação de uma pessoa que depois de admirar a bela Vênus de Botticelli feita com porcas e parafusos se deparasse com um aquário cheio de água intitulado como "aquário completamente cheio"?¹

Pra mim NÃO, a exposição do Vik Muniz não aproxima leigos (não gosto de usar essa palavra, dá impressão que eu sei muito de alguma coisa enquanto estou apenas aprendendo) à arte. Aliás, isso anda me incomodando demais. Quando é que uma exposição realmente irá aproximar alguém à alguma coisa que não seja um estereótipo? Quando é que o circuito de arte, e estou falando de tudo mesmo irá se preocupar de fato? Acho que isso é um dever das instituições, dos curadores, dos artistas, dos críticos e de nós que estamos estudando também! Os museus vêm com essa história de arte e educação, vão pra puta que o pariu com a arte e educação! Todos nós sabemos que uma visita guiada NÃO DÁ CONTA de "explicar" qualquer coisa relacionada a artes. Mas eles vão lá e explicam. E o povo fica feliz porque "entendeu". No entanto, esse é um momento de diálogo que o público leigo não tem oportunidade de ter, é um momento em que as pessoas têm com quem conversar e expressar suas dúvidas, seus sentimentos e sensações em relação à obra, coisa que em outro lugar não teriam. Podemos pensar em nós mesmos, com quantas pessoas (sem contar as que estudam ou trabalham com arte) nós conseguimos manter um diálogo sobre arte? Pois é meus caros, o buraco é mais embaixo, muito mais embaixo...

Aí me vem o CCBB com aquela exposição sobre a identidade brasileira: "Brasil Brasileiro procura espelhar nossa identidade cultural e refletir nossa brasilidade através da pintura. Evidentemente, são tantos os aspectos de nossa identidade cultural que uma exposição, mesmo abrangente, não consegue reuni-los. Brasil Brasileiro não pretende construir nenhuma teoria antropológica sobre o ser brasileiro, nem representa uma antologia da arte brasileira; é uma mostra sem pretensões, simples como uma tarde de sol, num domingo à beira-mar. Prazerosa.". Essa é a fala do curador Fabio Magalhães sobre a exposição. Eu nunca tinha ouvido falar nele, mas o amigo google tá aí pra isso... o cara não é pouca coisa. É museólogo; já foi curador do MASP; da Bienal do MERCOSUL, entre outras coisas. E então nos deparamos com esse tipo de proposta em um espaço como o CCBB, que poderia ser um verdadeiro pólo de conhecimento para os tais leigos, porque todos frequentam o espaço. "Mostra sem pretensões": Fábio, você é melhor que isso tenho certeza. Desde quando alguma coisa não tem pretensão? Tem sim! Mesmo que não se saiba... O que não é o caso de uma exposição desse porte, não é minha gente? E o que mais me espanta não é o fato da exposição estar cheia daqueles quadros modernistas que eu detesto, é o fato de toda a concepção da exposição ter esse caráter moderno, essa busca de uma identidade brasileira que não existe, ou se existe é plural (e nossa pluralidade vai além das matas, das mulatas e do futebol...). E que infelicidade, querer representar o Brasil em uma exposição de pintura. Não que eu não ame ser brasileira, mas pra mim arte não tem lugar pra ser. Claro que existem fatores regionais que são extremamente importantes, mas tomá-los como referência principal e no caso, único, é também reduzir o trabalho de arte. Os parangolés do Hélio seriam prato cheio pra algo do tipo, ou até outro trabalho dele... Mas ainda bem que ficaram bem longe! (Mesmo sendo tão pintura). Fiquei realmente feliz quando minha amiga, que estava super animada pra ver a exposição, se decepcionou com o que viu e preferiu a exposição que vimos em seguida na Durex. Ela não é de artes, mas ainda assim questionou "poxa, só tem pintura?" e não se contentou com a tentativa de representação da nossa identidade. Mas será que um visitante de fora do país teria a mesma reação? Ou mesmo alguém de uma geração mais antiga...

Tenho admirado o trabalho feito pelo MAC de Niterói, eles estão dando espaço para diálogo entre curador, artista e público. Para a exposição "Investigações Pictóricas" que reúne obras contemporâneas de pintura, foi feito um debate com a curadora e um dos artistas (não sei se haverão outros sobre esta exposição). Não é a primeira vez que isso é feito no MAC e espero que não seja a última. A Caixa Cultural, que está cada vez mais crescendo na área de artes visuais, realiza uma visita guiada com o próprio artista ou com o curador da exposição e promove uma distribuição gratuita dos catálogos no final do encontro. É claro que essas ações não iram de uma hora pra outra aproximar o público leigo, mas acho que é um bom começo. Se nós que somos da área não temos espaço suficiente para reflexão, que dirão os leigos?

As críticas nos jornais (se é que ainda existem) podem ser uma forma de aproximação, mas a quem interessa? O jornal é a mídia do esquecimento, além dos interesses capitalistas que envolvem... Não acredito que seja possível uma reforma como a de 60/70, não porque não haja interesse por parte dos artistas ou dos críticos (de alguns talvez sim), mas porque tudo envolve uma questão financeira. Tudo cada vez mais envolve uma questão financeira e porque não a arte? Sim, a arte envolve muito dinheiro, mas acho que novelas e celebridades dão mais dinheiro às mídias do esquecimento.

Uma das minhas maiores angústias em estar fazendo um bacharelado em história da arte é que quanto mais conhecimento eu tenho, menos eu consigo dividi-lo. Justamente porque em arte as coisas não são explicáveis ou entendíveis (daí a dificuldade da arte e educação funcionar). Outra coisa que me incomoda é: eu tive que esperar chegar à faculdade pra ouvir falar de Caspar David Friedrich, Richard Serra, Waltercio Caldas e vários outros artistas... Para saber que depois do Renascimento e antes das Vanguardas Européias existiu muita coisa importante e que todas as mudanças foram um processo lento com referência no passado e não mudanças bruscas em busca do novo. E principalmente, só depois da faculdade pude abrir os olhos pra produção contemporânea e para os problemas da arte ao invés de esperar por representações fiéis do mundo, com simbolismos que eu não compreendo e alimentar a fantasia romântica da arte e do artista. Por quê? Por que eu só pude saber disso tudo na faculdade? Estudar arte é também uma aprendizagem para as coisas da vida, é um exercício para a sensibilidade. Então por que demorei tanto? Por que não tive ninguém pra me apresentar a tudo isso antes? E mais angustiante ainda, por que eu não consigo apresentar tudo isso a outras pessoas?

Essas perguntas não têm respostas, acredito. Todo desenvolvimento gera consequências positivas e negativas. A arte cavou seu próprio buraco. A nós, que estamos envolvidos, que criamos tudo isso, cabe a incumbência de tentar consertar as falhas. É difícil e talvez até mesmo impossível reparar o problema do elitismo na arte, mas isso não impede que medidas sejam tomadas. Com certeza estamos falando de um problema que é gerado também pela má formação (senão quase nenhuma) de arte no ensino fundamental e no ensino médio, mas essa é uma questão muito mais profunda, que não é meu objetivo abordar neste texto. Acho que a primeira forma de ir contra esta situação, é fazendo algo que eu mesma faço muito pouco: expressando opiniões. Quando nos posicionamos perante algo, é possível que haja diálogo e é através do diálogo que a arte se movimenta. A criação de espaços virtuais que cada dia mais está surgindo, é uma possibilidade para que isso aconteça e seja compartilhado, como é o caso deste blog. Neste ponto acho a internet fundamental, porque através dela podemos estabelecer diálogos que não são possíveis em outras mídias, podendo inclusive ter um alcance muito maior e diversificado. Outra ação importante é fazer com que essa crítica não seja fechada, que ela seja um comentário e não uma verdade e que haja espaço para um diálogo entre diferentes críticas e que ambas saiam ganhando. Um espaço em que artistas, críticos, curadores e até as instituições, possam existir sem anular a presença do outro, um espaço para troca. Acho que a cova da arte é quando seus agentes esquecem-se da troca. E isso não é só para com o público leigo.

Arte se compreende através da sensibilidade, mas o seu desenvolvimento só se é possível através do diálogo. Não o diálogo que explica e simplifica. O diálogo da arte é o diálogo da subjetividade, e das várias leituras possíveis, que muitas vezes é deixado de lado por uma tentativa de se fazer entender por completo. Sinto falta de um espaço em que as pessoas não tenham receio de falar por medo do erro e onde os julgamentos possam ser mais amenos, livres de preconceito, um espaço em que a obra de arte tenha voz tanto quanto quem fala por ela. Talvez seja a conquista desses espaços que possa um dia trazer um público carente de formação para as proximidades do circuito e a integração (como forma de aprendizado) entre os que nele coexistem.
¹ Referências aos trabalhos de Vik Muniz e Waltercio Caldas.

a obra é o resultado?

Grandeza é uma palavra que em seu sentido literal define a parte mais conhecida trabalho de Vik Muniz. Porém a exposição em cartaz no MAM Rio reúne esta produção em contraposição a trabalhos menores. Esta é talvez mais importante questão trazida por Vik: a escala. Seus trabalhos se dividem em enormes composições e composições pequenas, no entanto, o recurso fotográfico cria uma ilusão da real dimensão desses trabalhos, fazendo com que os pequenos comparados aos grandes, não tenham uma diferença tão grande.

O processo de criação é interessante em seu trabalho. Nos de grandes dimensões, são montadas no chão, imagens gigantes com materiais diversos, onde a imagem só pode ser reconhecida através de um afastamento espacial, ou seja, quando olhadas de uma visão aérea. Através da fotografia da montagem Vik Muniz promove esse reconhecimento. Nos trabalhos menores Vik também utiliza o registro fotográfico como sendo a obra, assim percebemos que apesar de interessante, a questão de seu trabalho não reside no processo e sim no resultado. A obra finalizada é importante, mas o fato de ser mais valorizada que o processo empobrece sua pesquisa.

A terceira característica de seu trabalho, que chama atenção, é a utilização de materiais que não são tradicionalmente reconhecidos como da arte, o que nos remete à arte povera. A escolha desses materiais e o processo utilizado criam a idéia de efemeridade, mas como a obra é o registro do processo, esse valor se perde. A reprodução de importantes obras da história da arte acaba por limitar a obra a uma mera reprodução já que o importante é apenas a imagem. A própria escolha dessas imagens se torna duvidosa.

A exposição como um todo contribui a essa redução (ou afirmação da proposta) do trabalho de Vik Muniz quando estabelece divisões por fases. A cada processo é intitulado um nome, que ao mesmo tempo em que o explica, também o limita, pois todo o significado da obra está ali, não existe entrelinha, não existe imaginação. É nesse sentido que o trabalho perde seu valor artístico, o que não impede a apreciação das questões aqui colocadas, bem como uma reflexão sobre os valores de uma obra de arte e sua presença no circuito de artes.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Vik MAM-Rio

Fiquei empolgado com a exposição do Vik Muniz. Com a exposição.
Tudo muito arrumado, muito explicado.
As explicações são desnecessárias e as referências e as intenções do artista são óbvias para iniciados nas artes, mas não para a maioria do público leigo que visitou a exposição. E ao contrário da maioria das exposições, essa atraiu particularmente uma grande fatia de público leigo, conseguindo pegar o pessoal que está "longe do alambrado"*.
Trazer o público para perto da arte não é apenas bom mas necessário. E nesse ponto a exposição merece todos os créditos.
Quanto ao trabalho, é diferente, bem feito, asséptico, autêntico e garantiu ao artista um lugar ao sol no mercado de arte. Se aproxima muito do design sim, mas devemos encarar essa proximidade da arte com o design com outros olhos.
Se pegarmos algumas imagens estampadas em capas de livro, CD, DVD e outdoors, ou fotografias de moda/publicidade, e não pensarmos apenas no veículo (a capa, o outdoor, a revista) e na destinação (ou seja, a propaganda voltada para o consumo), mas sim no objeto fotografado e nos processos por trás daquela imagem (a montagem, a fotografia, a colagem), veremos que aquele produto acabado é o resultado de um trabalho artístico. Muitas vezes o designer é um profissional com formação acadêmica em artes visuais, mas que optou por uma carreira que passa à margem do circuito institucionalizado de artes.
Não nos esqueçamos que Picasso, Toulose-Lautrec, Lissitzky, etc, também fizeram seus posteres com todo tipo de propaganda.
Os limites entre a arte e o design são tênues e há quem reivindique que hoje em dia sequer existem. E há quem os provoque.

* Luiz Camillo Osório no Seminário "Imediações-A crítica de Wilson Coutinho", realizado no MAM-Rio em 2008, nos fala que a maioria das discussões de arte atrai apenas o público que está "próximo do alambrado", ou seja, tem um alcance limitado às pessoas que se interessam por arte.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Flavio-Shiró: exemplo de força da pintura abstrata

Se Michelangelo queria libertar a escultura do bloco de mármore, Flavio-Shiró parece querer libertar a pintura de sua condição de pintura. Sentimos em seus quadros toda a energia e vitalidade possíveis de serem transmitidas através de uma pintura abstrata. Alguns artistas parecem ter a técnica como fator restritivo da liberdade poética. No entanto, Shiró domina igualmente as técnicas da pintura, desenho, fotografia e escultura, conseguindo assim fazer fluir sua sensibilidade independente do veículo escolhido.
A fase figurativa dos anos 50 dá lugar à abstração iniciada na década de 60. Nesse momento o artista encontra seu caminho, o que será a tônica de seu trabalho até a atualidade.
Flavio-Shiró, no Centro Cultural dos Correios-RJ até 7 de dezembro de 2008, merece uma visita.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O fim da história da arte ou Como a obra se abre à experiência

Fico me perguntando sobre a produção artística atual o tempo todo. Sinto falta das teorias que fundamentam as obras. Sinto falta do "historicismo" (na pior concepção do termo), da arte vista como uma sequência de movimentos, todos bem explicados e datados. Fica perfeitamente compreensível, cria o "valor histórico" de que nos fala Argan.
As obras soltas, cada artista fazendo uma coisa diferente, não apontam para uma direção. Fica tudo disperso, sem coerência, às vezes confuso. Sinto falta de um manifesto, da unicidade de pensamento, de um grupo de artistas fechados em torno de uma proposta, de um conceito, de uma estética. Por isso aprecio iniciativas de grupos como Atrocidades Maravilhosas.
Alguém disse que a vida dos artistas interessa mais do que suas obras (confesso, não lembro quem, vou pesquisar). Vasari levou isso ao extremo, com sua queda por Michelangelo, assim como Zola adorava os amigos impressionistas e Roger Fry tinha suas preferências por Cézanne.
Quero deixar claro que não concordo com isso. Não é propriamente a vida do artista que me interessa, mas sua relação com o contexto social em que está inserido, com seus pares e com a vida. Nesse sentido, a práxis gera a estética e torna-se a teoria sobre a qual se fundamentará a história.
Por outro lado, essa produção contemporânea tão diversificada nos dá algo valioso: temos a obra - e apenas ela - nua e crua. A obra aberta, como nunca, às mais variadas interpretações. Não interessa (ou não deveria interessar) se foi produzida por esse ou aquele artista, nem se a "crítica de catálogo" foi escrita por um renomado teórico. A obra fala diretamente ao espectador e se não produz o efeito desejado pelo artista ou crítico, pelo menos vale como experimento.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Potencial conceitual que se perde na via da auto-didática

Em cartaz na Caixa Cultural, a mostra “Otrebor: A outra imagem – atípicos”, do pintor Roberto Magalhães, oriundo da segunda metade da década de 60, nos dá um panorama de sua obra mais recente – dos desenhos da década de 80 aos trabalhos atuais.
Ali temos um mundo de cores, formas, seres, imagens. Ao mesmo tempo que é figurativo, linear, não busca uma realidade. É uma viagem da imaginação, um quê de surrealismo, de abstracionismo geométrico. Cores quentes sempre fortes. Cores frias quase sempre dissaturadas, grisalhas. Seus temas são um reflexo da ânsia pós-moderna: tecnologia, biologia, tempo, futuro. Em suas imagens vimos Salvador Dalí, Roy Lichtenstein, David Hockney, Franz Ackermann e a arte brasileira dos anos 70 e 80.
Seus desenhos possuem qualidade, e cremos serem melhores que as próprias pinturas. O trabalho que mais nos chamou atenção (e que não lembramos o nome) foi um tratado sobre o nariz. Neste, Magalhães analisa os tipos humanos – arquétipos - através de seus narizes. Algo como uma quiromancia, mas sobre o nariz, ou seja, uma “nasomancia”. Mas sem prever o futuro.
Mas devo dizer que, como um todo, seu trabalho não nos satisfez. Tudo nos pareceu levemente desorganizado. O excesso de idéias que Magalhães imprime em suas telas se torna menos inteligível no momento em que há também excessivas imagens. Era necessário ser mais prolixo conceitualmente sendo mais sintético imageticamente. Mais anos 70 que anos 80.
Diante de sua obra, estamos oniricamente dentro da criação do pintor viajando em suas utopias. Mas nos incomoda o silêncio. Magalhães insere palavras desconhecidas na tela: frutos de sua criação, como um novo dialeto. Mas, também a partir desse recurso não foi possível um aprofundamento maior. Talvez a intenção do artista seja essa: a primazia plástica. Fica a dúvida.
De tudo, o que realmente ficou foi um enorme potencial conceitual-ideológico que é abafado por um desencontro plástico. Magalhães, auto-didata, força um plasticismo desnecessário que cria obstáculos à sua obra. As imagens acabam chamando mais atenção que a idéia, que é relegada a um segundo plano. Não que esta seja mais importante, mas acreditamos que um conceito mais valorizado daria mais densidade à obra, acarretando reflexões igualmente densas. Tornou-se o trabalho superficial. Não por acaso ou preguiça, mas sabemos que por escolha do artista.
Em todo caso, não concordamos com suas escolhas. Auto-didatas se sentem seguros em aventurar-se por novas vias, crendo que continuarão sempre brilhantes. Em Roberto Magalhães, a segurança é tão densa que não deixou espaço para o espectador. Seu trabalho é só um trabalho de arte. Uma arte fechada, por escolha, em que não se entende nem a obra nem a opção do autor por fazê-la dessa forma. Sendo assim, só podemos ansiar por novas aventuras.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Dandismo e a Nova Modernidade

Um novo século que se inicia com atentado terrorista, derrubando os símbolos do capitalismo, dará lugar, no campo das artes visuais, a uma nova objetividade concreta, a um surrealismo, a um neoclassicismo, a um romantismo ou a indiferença ?
Lulu Santos em "Tempos Modernos" anunciava uma Belle Époque que não despontou. "Um novo começo de era, de gente fina elegante e sincera", um dandismo, que foi atropelado pela realidade (indiferença global?) contemporânea.
A Belle Époque de fins do século XIX terminou com a Primeira Guerra. A imaginada por Lulu Santos, de fins do século XX, terminou antes mesmo de ter começado. Sinais do tempo em que a velocidade da informação supera a dos meios de transporte. A comunicação mais rápida que o pensamento. Precisamos parar e pensar.
Escrevo este ensaio em 17 de setembro de 2008, sete anos após o fim do início do século XXI. Vivemos num século que ainda não começou: deu seus primeiros suspiros e morreu. Voltamos às promessas do final do século XX. Vivemos, pela primeira vez na história, um período indefinível entre séculos consecutivos (será o século vinte e meio?).
Vemos em Baudelaire que não é possível ser dândi sem tempo e sem dinheiro. Não é possível amar verdadeiramente, se apaixonar, sentir a vida e a modernidade, sem esses dois elementos (ainda que Baudelaire deixe claro que o dândi não visa a fortuna, o dinheiro é necessário para o exercício de seu ócio). Nesse sentido, talvez seja por isso que a vida nos pareça tão corrida, tão crua, sem graça, sem arte. Conseguiremos reencontrar a beleza nas coisas do dia-a-dia, sem tempo e sem dinheiro? (Talvez por isso a produção artística desde os anos 60 no Brasil e no mundo esteja tão desinteressada pela estética do belo).
Trabalhamos o tempo todo para ganhar dinheiro e com isso, não temos tempo para pensar e contemplar. Um ciclo vicioso no qual quem tem tempo não tem dinheiro e vice-versa. Baudelaire tinha a certeza de que o trabalho impossibilita o homem de ser dândi, já que retira dele o tempo necessário para a contemplação e o pensar. O dândi é um apaixonado, um sonhador romântico, que tem a noção de que a beleza da vida não está perdida, mas apenas escondida no meio da pressa e da confusão diárias.
Baudelaire afirma que o momento propício para o surgimento do dandismo é o período de crise, período entre épocas em que se busca uma definição. O que vivemos agora, senão um grande período de instabilidade - incerteza do pós-guerra, da Guerra Fria, da derrocada do comunismo, da globalização, do terrorismo. O que virá depois, ou melhor, agora? Que momento é esse? Passamos todas essas décadas a procura de uma identidade artística: concretismo, neoconcretismo, nova objetividade. Lulu Santos não foi o último romântico. Temos muitos românticos hoje em dia, somos todos dândis latentes. O dândi surge nesse momento, numa relação quase mitológica com a natureza, numa quase aspiração ao divino. O dândi tem a certeza de sua efemeridade mas não tem medo, pois sabe que existe um pano de fundo - como diz Nietzsche - que é a natureza eterna que permeia e acompanhe a evolução do homem e da cidade. São os faunos, as ninfas, os sátiros, os seres mitológicos das florestas. Nesse sentido, o dândi conhece a beleza, Apolo, e o sublime, Dioniso. Carrega o belo em si e em seus ideais, e traz consigo a certeza, o conhecimento último da realidade, que o leva a um estado dionisíaco de contemplação e ao mesmo tempo de anestesia perante uma realidade criada pelo homem, em oposição a uma realidade do belo e da natureza.
Jung analisou a sociedade alemã, que se deixou levar pela loucura das duas grandes guerras, fundamentando sua teoria na mitologia nórdica: as motivações sociais estariam no despertar irado de Wotan. Acredito que Dioniso agora dorme. E deixa espaço para Apolo dar seus ares furtivamente por entre as brechas de nossa nova modernidade.

Referências Bibliográficas:

BAUDELAIRE, Charles. "O pintor da vida moderna". In: "Obras Estéticas: filosofia da imaginação criadora". Petrópolis: Vozes, 1993.
NIETZSCHE, Friedrich. "O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música".
JUNG, C.G.. "Wotan". In: "Aspectos do Drama Contemporâneo". Petrópolis: Vozes, 2007.