“O que importa para mim, querida Sofia, é que você não esteja entre aqueles que consideram o mundo uma evidência”
(O mundo de Sofia)
“Ocorreu-me de repente que não é preciso ter ordem para viver.
Não há padrão a seguir e nem há o próprio padrão: nasço.
(Água Viva)¹
Recentemente comecei a ler um livro que peguei emprestado com uma amiga há pelo menos cinco meses. O fato é que desde a adolescência queria ler O mundo de Sofia, mas só agora estou lendo. E talvez não houvesse momento melhor. O romance juvenil aborda questões filosóficas que durante toda história da humanidade instigaram (e instigam) este
maravilhoso e complexo
pequeno universo
que é o ser humano
e tem sido pra mim um resgate de uma percepção de mundo
que escapa ao marasmo da vida adulta,
das linearidades e
das evidências.
É com esse pensamento que desejo falar da ação Bem me quer, mal me quer de Luana Aguiar
Bem me quer, mal me quer a princípio é uma performance em que a artista
depila inteiramente uma de suas sobrancelhas.
Com uma pinça e um pequeno espelho de mão Luana arranca delicadamente um por um os pelos que aos poucos dão lugar à uma [ausência] com que não sabemos lidar. A contradição de leveza e dor também nos [afeta], não sabemos se apreciamos a bela mulher que se olha no espelho desenhando sua sobrancelha ou se fechamos os olhos sentindo a dor daquele ato que ultrapassa o feminino.
.
{A questão é que não sabemos o que fazer com aquilo que [não] nos é uma
necessidade evidente.
A partir do momento em que somos colocados diante de uma situação limítrofe² que nos obriga a encarar a deformação de um padrão visual ou comportamental ao qual estamos habituados (a simetria e a depilação regular do excesso de pelos das sobrancelhas), essa situação não diz respeito apenas a um limite do corpo, mas a um limite cultural, um limite que é fruto dos condicionamentos sociais a que estamos submetidos em nossas relações.
Bem me quer, mal me quer não fala apenas do feminino, seu ponto chave são os padrões da sociedade ocidental.
A ausência daquela sobrancelha
é
uma quebra do ritmo ao qual estamos condicionados.
Bem me quer, mal me quer não é apenas uma performance, pois não se encerra quando termina a ação.
Ela continua...
Reverbera na própria artista e em quem quer que a encontre.
Ela cresce viva e sem definição, como as sobrancelhas que já não são mais assimétricas³.
E continua, poeticamente,
resgatando aquilo que nos esquecemos:
a percepção de mundo que escapa das evidências.
Se na experiência estética da arte nos (re)lembramos dessa percepção, são nas vivências que nos damos conta de como é difícil e prazeroso ser o pequeno universo que (re)inventamos ser.
¹ Um dos meus livros favoritos. Clarice Lispector em 1ª pessoa.
² Situações Limítrofes é como a artista intitula a série de performances que vêm produzindo desde 2008 com a abordagem dos limites do corpo.
³ No dia seguinte à performance a sobrancelha restante foi retirada para manter a simetria do rosto.
Um comentário:
A não explicação de algo é estimulante, algo que o mundo prático e corrido às vezes vai tirando da gente...
(Mas ainda não consegui visualizar Luana assim !! rsrs Preciso de uma grande dose de subjetividade !!!! rsrs)
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