sábado, 21 de agosto de 2010

À procura das não evidências, vivências


“O que importa para mim, querida Sofia, é que você não esteja entre aqueles que consideram o mundo uma evidência”
(O mundo de Sofia)


“Ocorreu-me de repente que não é preciso ter ordem para viver.
Não há padrão a seguir e nem há o próprio padrão: nasço.
(Água Viva)¹



Recentemente comecei a ler um livro que peguei emprestado com uma amiga há pelo menos cinco meses. O fato é que desde a adolescência queria ler O mundo de Sofia, mas só agora estou lendo. E talvez não houvesse momento melhor. O romance juvenil aborda questões filosóficas que durante toda história da humanidade instigaram (e instigam) este


maravilhoso e complexo
pequeno universo
que é o ser humano

e tem sido pra mim um resgate de uma percepção de mundo

que escapa ao marasmo da vida adulta,
das linearidades e
das evidências.


É com esse pensamento que desejo falar da ação Bem me quer, mal me quer de Luana Aguiar

Bem me quer, mal me quer a princípio é uma performance em que a artista
depila inteiramente uma de suas sobrancelhas.
Com uma pinça e um pequeno espelho de mão Luana arranca delicadamente um por um os pelos que aos poucos dão lugar à uma [ausência] com que não sabemos lidar. A contradição de leveza e dor também nos [afeta], não sabemos se apreciamos a bela mulher que se olha no espelho desenhando sua sobrancelha ou se fechamos os olhos sentindo a dor daquele ato que ultrapassa o feminino.


.

{A questão é que não sabemos o que fazer com aquilo que [não] nos é uma
necessidade evidente.


A partir do momento em que somos colocados diante de uma situação limítrofe² que nos obriga a encarar a deformação de um padrão visual ou comportamental ao qual estamos habituados (a simetria e a depilação regular do excesso de pelos das sobrancelhas), essa situação não diz respeito apenas a um limite do corpo, mas a um limite cultural, um limite que é fruto dos condicionamentos sociais a que estamos submetidos em nossas relações.

Bem me quer, mal me quer não fala apenas do feminino, seu ponto chave são os padrões da sociedade ocidental.

A ausência daquela sobrancelha
é
uma quebra do ritmo ao qual estamos condicionados.
Bem me quer, mal me quer não é apenas uma performance, pois não se encerra quando termina a ação.

Ela continua...

Reverbera na própria artista e em quem quer que a encontre.
Ela cresce viva e sem definição, como as sobrancelhas que já não são mais assimétricas³.

E continua, poeticamente,
resgatando aquilo que nos esquecemos:
a percepção de mundo que escapa das evidências.

Se na experiência estética da arte nos (re)lembramos dessa percepção, são nas vivências que nos damos conta de como é difícil e prazeroso ser o pequeno universo que (re)inventamos ser.



¹ Um dos meus livros favoritos. Clarice Lispector em 1ª pessoa.

² Situações Limítrofes é como a artista intitula a série de performances que vêm produzindo desde 2008 com a abordagem dos limites do corpo.

³ No dia seguinte à performance a sobrancelha restante foi retirada para manter a simetria do rosto.

Um comentário:

...um cisco... disse...

A não explicação de algo é estimulante, algo que o mundo prático e corrido às vezes vai tirando da gente...

(Mas ainda não consegui visualizar Luana assim !! rsrs Preciso de uma grande dose de subjetividade !!!! rsrs)