sábado, 26 de fevereiro de 2011

Discurso de formatura*


O artista Waltercio Caldas certa vez escreveu:

“Todos os prefácios se assemelham. Insinuam alguma ironia, resumem rapidamente o que vai acontecer e desaparecem antes do assunto principal”(1).

Podemos dizer o mesmo dos discursos de colação de grau: Todos se assemelham, insinuam alguma ironia, apresentam alguns causos e desaparecem sem deixar vestígios.

Falo em nome dos que aqui se formam sem me sentir muito a vontade com a tarefa que me foi dada, pois como posso falar por todos se cada um nós tem uma diferente concepção do que seja a arte? Os matemáticos sabem o que é a matemática, os biólogos sabem o que é a biologia, mas nós, que agora nos tornamos bacharéis e licenciados em artes visuais e bacharéis em história da arte, passaremos a vida inteira remoendo a pergunta: afinal, o que é a arte?

São muitas as manifestações culturais que podemos dar o nome de arte e elas estão por toda parte, não apenas nos museus e galerias, mas também nas ruas, nas igrejas barrocas do centro do Rio, nos bailes funk dos morros cariocas, no carnaval que se aproxima. Até onde há ciência, há arte: das projeções geométricas da perspectiva renascentista à arte genética de nossos dias, a arte se entranha acintosamente nas coisas do dia-a-dia transformando o lugar-comum.

No entanto, a nossa concepção de arte, isto é, aquilo que nós acreditamos ser arte, é na verdade o resultado de teorias que surgem quando diferentes disciplinas – sociologia, antropologia, psicanálise, filosofia, estética, etc. – se propõem a investigar e analisar essa variedade de expressões simbólicas e culturais(2).

E é nesse não-lugar, nessa co-presença entre as coisas da vida e o emaranhamento de teorias, que podemos dizer que a arte promove o encontro entre a razão e a sensibilidade, entre o pensamento e o sentimento. A obra de arte, produto da imaginação criadora e do discurso teórico, nos lança sempre um desafio aos sentidos e à imaginação: decifra-me ou te devoro.

E é aí que entra o trabalho do historiador da arte: não deixar que a arte caia no esquecimento, não deixar que ela desapareça por completo na velocidade do tempo e nos espaços do mundo. O historiador preserva a memória do objeto da arte, traz a tona a sua lembrança; restaura as condições de sua inteligibilidade; garante às gerações futuras que o passado esteja sempre presente; torna a obra de arte sempre disponível à análise crítica. Se ao artista cabe materializar uma idéia, ao historiador da arte cabe restituir ao pensamento a idéia contida na matéria.

Ao arte-educador, por sua vez, cabe a tarefa de transmitir um pouco essa história, de despertar não apenas o olhar, mas principalmente o senso crítico para as coisas que nos cercam. Engana-se quem pensa que o professor sabe tudo. O exercício do magistério só se realiza por completo na dupla-troca de saberes e de experiências que se dá no convívio entre alunos e professores. E nisso talvez a arte seja a mais generosa e gentil das disciplinas: aquela que oferece maior possibilidade de diálogo entre alunos e professores, já que o verdadeiro da arte surge do dissenso tanto quanto do consenso.

Por fim, mas não por último, cabe ao artista a difícil tarefa de reinventar a arte constantemente. É através do ato de criação que o artista transforma a idéia em matéria, em processo ou procedimento artístico. A obra de arte é um “estranhamento na direção do sensível”(3), uma espécie de alienação do pensamento. Ao se libertar da obra o artista não mais responde por ela. É no embate com o público e com a crítica de arte que serão negociados os significados da obra de arte. E ao fazer a arte o artista gera também os espaços de convivências, de trocas de experiências, de negociação de sentidos, de ressignificação simbólica e de partilha do sensível(4).

Para encerrar esse discurso, se a arte é uma ficção da cultura européia, uma invenção da cultura burguesa, pelo menos podemos afirmar que é a mais maravilhosa das ficções! Que sejam sempre bem-vindas todas as formas de arte. E que sejam igualmente bem vindas todas as críticas, pois, sem arte e sem pensamento crítico, nós hoje não estaríamos aqui.

*Discurso proferido por Agnaldo Rego na ocasião da colação de grau dos alunos dos cursos de Bacharelado em História da Arte, Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais da UERJ, em 18 de fevereiro de 2011 no Teatro Noel Rosa-UERJ.

(1) Prefácio de Waltercio Caldas da primeira edição do livro Manual da ciência popular, 2.ed.ampl. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

(2) Cf. CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. São Paulo: Martins, 2005.

(3) HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética I. 2.ed.rev. São Paulo: EDUSP, 2001.

(4) Cf. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005.

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