sexta-feira, 24 de abril de 2009

Tunga: um estranho familiar

Experimentar o corpo e com o corpo: desde os tempos neoconcretos[1] até os dias de hoje o corpo se faz presente, das mais diversas maneiras, nas poéticas de grande parte dos nossos artistas. É a herança neoconcreta de experimentação, de íntimas trocas entre obra e espectador, de fazer deste, parte constitutiva do trabalho.
Em Tunga é inegável a presença dessa herança. No entanto, ela é envolvida por uma série de outros elementos participantes de sua poética tais como relação entre realidade e ficção, afirmação de mitos, fenômenos científicos, processos alquímicos, fabulações e uma profunda relação com a literatura e cinema. Esses elementos se corporificam em esculturas / instalações / performances / escritos / vídeos: nunca, porém, em uma única destas categorias, mas criando conexões, co-relações entre elas.
Questionamento das instituições, relação entre arte e vida, desdobramentos da noção de autoria individual, poéticas coletivas e experimentação são também termos chaves para designar as práticas neoconcretas. E assim se evidencia a relação do trabalho de Tunga com tais práticas. Mas o que torna a obra de Tunga um emaranhado de complexidades que se relacionam, mas que, ao mesmo tempo, se distinguem das proposições de Hélio Oiticica e Lygia Clark?
A opção de Tunga é por experiências radicais. Em suas próprias palavras, no seu modelo de trabalho “existe a vontade de que uma experiência seja generalizada e seja testemunhada como uma experiência radical, não banal, reveladora de um sentido novo. Isso se converteu em uma estratégia de trabalho, ou seja, o fato de existir uma quantidade de pessoas fazendo a mesma atividade, sendo essa atividade deslocada de seu sentido originário, criando em si mesma uma estranheza para essa atividade, o que faria com que ela se manifestasse como sendo uma outra coisa, além daquilo que ela é.” [2]
Que Tunga, Hélio e Lygia passam pelo experimental não há dúvida. Suas estratégias se diferem pelo fato de que esses últimos buscavam ter suas experiências criativas "compreendidas", como se determinassem, através de registros, a linha de pensamento pela qual se desenrolaria a leitura de suas proposições.
"Como outros de sua geração, Oiticica manteve a crença na auto-explicação e através da prática do arquivo pessoal investiu conscientemente na fabricação de sua própria posteridade. Com esta estratégia, reproduzia um pensamento de Glauber Rocha (...) que segundo Rogério Duarte (parceiro de ambos) afirma: "inventaria-te antes que os outros te transformem num mal-entendido" (COELHO, 2008)
Tunga, ao contrário, parece deixar em aberto a criação de sentido para suas ações. Ele se coloca em uma busca constante, cria relações onde parecem não existir e nisto reside a complexidade da sua poética. Muitas de suas ações são cercadas de conteúdos escritos, mas estes não têm o caráter documental tal como em Hélio. Os escritos de Tunga são muitas vezes poesias ou narrativas imaginárias que criam um jogo de ficções permeando o trabalho.
Tunga aglutina ou elabora objetos e situações de significações misteriosas em um mesmo espaço ou ritual. Crânios e esqueletos humanos, cabeças de esculturas clássicas, redes, trançados, bengalas (A La Lumiere des Deux Mondes, Museu do Louvre - 2005); enormes dentes e outras formas orgânicas fundidas em alumínio, penduradas por correntes em estruturas de ferro e tecido (Afinidades Eletivas, 2004); ainda enormes dentes humanos sobre um tabuleiro de xadrez (Ações sobre Afinidades Eletivas, 2004 e 2005); corpos nus ou semi-nus que contracenam com as mesmas formas orgânicas já citadas e se lambuzam em uma matéria pegajosa (Ação na Floresta, 2002); criação de fabulações, ficções, narrativas imaginárias ou afirmação de mitos que dão suporte à construção de trabalhos (Tesouros-Besouros, 1992 ou sereiA, 1997); diversos objetos, incluindo vidros cheio de líquidos, agrupados por redes, como células, construindo um poderoso emaranhado vermelho, apresentado em várias versões (Truge Rouge, 1996, 1998, 1999, 2001): essas são apenas descrições superficiais do que se pode testemunhar em algumas de suas instaurações.
"O caráter ritual das instaurações de Tunga situa-se no rastro do caminho aberto na arte por Lygia Clark, para quem o artista contemporâneo é o propositor de "um rito sem mito".", afirma Suely Rolnik[3]. Ora, Tunga é um grande propositor de rituais, mas a esse rastro, ele adiciona alguns fatores que distanciam profundamente o seu trabalho e o de Lygia. Sobre a presença do corpo em seu trabalho, por exemplo, Tunga diz que “esse corpo é um corpo constituído, sabedor de suas experiências, de sua milhagem. Ou seja, essas experiências não são propostas como sensações, mas como confronto com uma fantasmática que pode produzir outras fantasmáticas.”[4]
Tunga também vai de encontro às proposições de Lygia ao não deixar de afirmar “o espaço representativo” e a “transferência no objeto de arte”, além de não se opor à “precariedade”[5] (considerando o uso de materiais como ouro, prata ou alumínio fundidos e complexas estruturas em suas instalações). Ele mesmo estabelece uma relação entre o seu trabalho e a escultura clássica através da idéia do que resta da matéria, daquilo que tomou forma mediante uma lapidação, um aperfeiçoamento.[6]
Dentes, bengalas, trançados, formas orgânicas, matéria pegajosa, corpos, rituais: são várias as situações em que os mesmos elementos se fazem presente. Essas indas e vindas, esse círculo de revisitação é a prova de que Tunga não para de pensar, viver e rever as suas próprias obras / ações. O trabalho torna-se uma grande massa orgânica que se encontra em constante mutação, processo pelo qual o artista se torna agente.
Dar voz às proposições de Tunga é deixar-se levar pelo estranho, pelo misterioso, pelo cruel. É entrar por um labirinto de significados e sair dele descrente de qualquer conclusão. É sentir a vertigem que entra pelo olhar e se apodera do corpo como um choque de sensações (o que se difere das propostas sensoriais de Lygia). É um estranhamento familiar: familiar porque inevitavelmente se conecta com o passado histórico neoconcreto e estranho porque abre um campo imenso e misterioso de possibilidades.
[1] sem desconsiderar as práticas pioneiras de Flávio de Carvalho
[2] Tunga. Assalto. p. 130
[3] Rolnik. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer...
[4] Tunga em entrevista a Antonio Gonçalves Filho
[5] Clark. Nós somos os propositores.
[6] Tunga. Assalto. p. 134

Bibliografia
MONTEIRO, Ivana. Instaurando com Palavras: as Narrativas e Fabulações de Tunga. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 6, p. 82-95, 2004.
ROLNIK, Suely. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer..., In: MORIN,
France (org.). A Quietude da Terra (cat.). MAM/Bahia, Salvador, 2000.
TUNGA. Barroco de Lírios. São Paulo, Cosac & Naify, 1997.
TUNGA. Assalto. CCBB-Brasília, Brasília, 2001 (cat.).
TUNGA. Caixa de livros Tunga. Cosac & Naify, 2007
COELHO, Frederico. Arquivo e Afeto em Hélio Oiticica. In: -----. Livro ou Livro-me: os escritos babilônicos de Hélio Oiticica. 2008. Tese (Tese em Literatura Brasileira) – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
CLARK, Lygia. Nós somos os propositores. In: Clark, Lygia. Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980
Tunga em entrevista a Antônio Gonçalves Filho. http://www.cosacnaify.com.br/tunga/entrevista.asp

3 comentários:

Agnaldo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Agnaldo disse...

Adorei seu artigo. Você tem uma sensibilidade poética para a escrita que herdou da arte. Ainda tenho dificuldade de captar o que a obra diz e traduzir em palavras. Tive esse choque com as obras do Flávio-Shiró e do Farnese de Andrade e com as gravuras renascentistas e do Goya expostas no CCBB em 2007.
É ver a obra e sair correndo pra tentar escrever e guardar o que a gente sentiu.
Vê se publica mais coisas no blog.

lu disse...

poxa, valeu agnaldo!
realmente não é fácil brincar com palavras. Vcs historiadores são mto corajosos. esse foi o trabalho do período passado que tomou a maior parte do meu tempo. Mas se senti muito feliz ao concluí-lo. vi q sou capaz, mas preciso não parar!