quinta-feira, 23 de julho de 2009

Uma nova defesa da arte contemporânea

“O que inicialmente era repulsivo aos espectadores da arte moderna,
quando quer que tenha começado, é que ela própria era ofensiva, não que
representasse coisas ofensivas.”
Arthur C. Danto*
Existe ainda um certo tipo de sentimento com relação à arte contemporânea associado à idéia de fraude, de cinismo, de repetição de modelos do passado e coisas do gênero, que motiva a produção de um discurso pseudo-crítico saudosista, utópico, que anseia, dogmaticamente, por um retorno à ordem estética anterior aos anos 60.
Esses pseudo-críticos se esquecem que grande parte da produção artística desde meados do século XIX passou por um difícil processo de aceitação, num contínuo embate com os padrões estéticos - ou simplesmente, o gosto - da época. Ou seja, em qualquer época existe sempre um descompasso entre os defensores da tradição - sejam eles críticos de arte, acadêmicos, ou o público em geral - e os artistas produtores de novidade.
Por outro lado, críticos como Baudelaire e Zola saíram em defesa do novo, da modernidade, da ruptura com a tradição, o que acabou se transformando, até certo ponto, na motivação principal dos artistas de vanguarda: a inovação constante, o desejo de mudar e romper com estruturas tradicionais, uma crítica do passado e um programa para o futuro.
Ainda hoje, como não poderia deixar de ser, temos os grupos que se posicionam contra ou a favor da produção atual. Mas com o agravante de que, por ignorância ou desconhecimento do que aconteceu com a arte nos últimos cem anos, os pseudo-críticos pregam um retorno impossível ao passado, através de um discurso de retórica modernista que contribui mais para o enraizamento do preconceito em relação à arte - e aos artistas contemporâneos de um modo geral - do que para a orientação do público de arte.
Podemos verificar nesse discurso pseudo-crítico o desejo pela manutenção da ordem do mundo: querem que tudo seja previsível, cada coisa no seu lugar. Nesse mundo perfeitamente ordenado, confortável, asséptico, temos o aparente controle da situação, sabemos exatamente de onde surgirão as coisas “imprevisíveis” e onde devemos procurar o que buscamos: a política como geradora de escândalos de corrupção; a imprensa como veículo de denúncia; o cinema e o futebol como entretenimento; a religião para o conforto espiritual; os artistas produzindo belas pinturas e esculturas que serão guardadas para sempre nos museus; a arte como fonte do prazer “retiniano”.
O problema é quando a arte quebra essa relação com a aparente ordem do mundo e nos tira da posição confortável de admiradores de coisas belas. E quando a arte produz o escândalo? Duchamp apresenta uma roda de bicicleta como obra de arte. Piero Manzoni enlata merda de artista. Chris Burden leva um tiro no braço diante das câmeras. Ives Klein manda mulheres nuas pintarem a parede com seus corpos.
E quando a arte se apresenta como simples forma de entretenimento, como a piscina de bolas de Ernesto Neto** ou o tobogã de Carsten Höller instalado na última Bienal de São Paulo?
E quando a arte deixa de estar a serviço da religião e se propõe a profanar o sagrado? O crucifixo de Márcia X, os oratórios de Farnese de Andrade, o tridente de Alexandre Vogler.
O embate da arte não se dá mais somente com o mundo da arte mas com o mundo em si. Para entendê-la é preciso, antes de mais nada, livrar-se dos preconceitos. E nisso o verdadeiro crítico de arte tem um papel fundamental: se antes sua missão era educar o olhar - para permitir a assimilação do novo ou para uniformizar o juízo de gosto - agora seu dever é ajudar o público a compreender as múltiplas formas de manifestação artísticas, resgatando a história da arte para reduzir o abismo de mais de cinquenta anos que separa o público da arte contemporânea.
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* DANTO, Arthur C.. “Marcel Duchamp e o fim do gosto: uma defesa da arte contemporânea”. In: ARS Revista do Depto. de Artes Plásticas ECA-USP, nº 12, dez/2008.
** Piscina de bolas exposta na exposição Tropicália no MAM-Rio em 2007 . Jimson e Carolline me ajudaram a descobrir a autoria dessa obra, já que originalmente havia publicado neste artigo como sendo de Hélio Oiticica.

3 comentários:

mussorgsky disse...

o último parágrafo do texto me fez refletir que, como educador, não devo apenas apresentar, mas ensinar as pessoas a exercer o pensamento e a percepção do outro. no meu estágio, a diretora reclamou no conselho de classe que " os pais agora querem que a escola dê educação (no sentido de bons modos). a escola tem a obrigação de ensinar, educação se aprende em casa". como artista,agora é a mesma coisa, terei de ensinar os outros a respeitar arte...

Facuri disse...

surpreendente

c. tinôco disse...

agnaldo botando banca!
a conclusão ficou bem bacana.
verifica se as mulheres do ives klein pintam em parede mesmo ou em tela, e se a piscina de bolinha é do hélio.